domingo, 4 de abril de 2010

Wayne: impedido de jogar futebol pelo árbitro

04 de abril de 2010 11h48

Ao longo de sua passagem pela base, lateral conquistou títulos e amizades Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

Wayne (ao centro, com troféu) era destaque do Botafogo-SP, mas deixou os gramados após incidente em clássico
Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

Emanuel Colombari - Direto de São Paulo

Wayne Raphael Dantas Araújo era um promissor lateral esquerdo do Botafogo de Ribeirão Preto. Ou seria. Não foram as suas habilidades ou os seus bons resultados que deram a ele destaque nacional na imprensa esportiva. Wayne foi protagonista de um lance curioso e infeliz no Campeonato Paulista Sub-15 de 2002, que acabou marcando negativamente e prejudicando definitivamente a sua carreira.

O fato aconteceu durante um clássico diante do Comercial na primeira rodada do torneio. Wayne, que não tem a mão esquerda por conta de um defeito congênito, cobraria um lateral para o seu time. Apoiando a bola na mão direita e no pulso esquerdo, ele arremessou a bola ao campo. O árbitro Jenkins Barbosa dos Santos, porém, marcou reversão, entregando a cobrança para o rival de Ribeirão Preto. Surpresa: seguindo rigorosamente a regra, Wayne teria que cobrar o lateral com as duas mãos.

O lance se repetiu outras duas vezes ainda no primeiro tempo. Na terceira reversão, o técnico Zito invadiu o gramado para protestar. Acabou expulso de campo. No segundo tempo, para que Wayne ficasse longe da lateral e evitasse novos problemas, três jogadores tiveram que ser remanejados no Botafogo. Ao fim do jogo, que terminou sem gols, os botafoguenses decidiram registrar um boletim de ocorrência, dizendo-se vítimas de preconceito do árbitro, que não quis atender ao clube após a partida.

"A reação, como não poderia ser outra, foi de espanto, decepção e desorientação. O futebol era o único lugar em que eu me sentia bem, onde meu talento superava minha deficiência e onde eu era visto como uma pessoa normal. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo comigo, e justamente contra nosso maior rival, numa estréia de Campeonato Paulista", contou Wayne ao Terra.

"Minha cabeça virou um turbilhão, pois estava em uma competição oficial, uma das mais importantes do ano para o time. Eu estava impedido de fazer o que sabia. Tive que terminar o jogo em outra posição."

Apesar do registro na delegacia, os pais de Wayne não levaram o caso adiante na Justiça, e nem buscaram um processo contra a Federação Paulista de Futebol. "O mérito da questão era moral, e não financeiro", explicou o ex-capitão do time, que queria apenas evitar o mesmo tipo de mal-entendido na sequência da carreira. "O único desejo deles e meu era continuar a jogar futebol."

Na época, a FPF se negou a comentar publicamente o caso. Extra-oficialmente, a Escola de Arbitragem da entidade culpou a inexperiência do árbitro por tamanho rigor na regra. Tecnicamente, Jenkins estava correto. O árbitro, que seguiu normalmente carreira, chegou à categoria profissional nos anos seguintes e apitou partidas válidas pela Copa São Paulo de futebol júnior, da então Copa FPF e das divisões de acesso do Campeonato Paulista.

"Nunca fomos contatados pela FPF, nem para um pedido de desculpas, para saber se aquilo deixou alguma sequela ou para simplesmente informar que tomariam atitudes que visassem o fim de ato como esse no futebol", contou Wayne, até então um jogador cotado para as categoria de base da Seleção Brasileira e com uma perspectiva das mais otimistas na carreira.

Wayne Raphael: de promessa a jogador sem clube
Na Milk Cup, disputada na Inglaterra, Wayne e o Botafogo-SP foram vice-campeões, perdendo o título para o Everton-ING Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Mesmo com sucesso em torneio internacional, Wayne ficou sem clube e acabou dispensado
Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Nascido em 1987, Wayne Raphael Dantas Araújo chegou ao Botafogo de Ribeirão Preto em 1994, sendo um dos mais jovens da categoria. "Destaquei-me desde o início pela capacidade física e pela inteligência, pois era capaz de fazer a leitura do jogo e auxiliar os treinadores na comunicação com o grupo. Conhecia bem meu time, as características do meu companheiro. Como tinha facilidade para interpretar o jogo, podia dar essa colaboração a mais ao grupo", descreveu o hoje ex-jogador, em entrevista exclusiva ao Terra.

As características fizeram com que Wayne passasse a ser aproveitado também nas categorias acima, dos atletas nascidos em 1986 e 1985. Durante os anos que passou no Botafogo, foram cerca de 40 torneios disputados, com pelo menos 30 finais. Em 2002, antes da polêmica do Campeonato Paulista, Wayne foi vice-campeão da categoria júnior da Milk Cup, torneio internacional de base na Irlanda do Norte, o que fez com que ele fosse pré-selecionado para integrar a Seleção Brasileira no Mundial Sub-15.

"Eu me destaque na competição. Fui elogiado até pelos árbitros, credenciados pela Fifa. Chamei a atenção do Américo Faria (então diretor de Seleções da CBF) e fui pré-convocado para o Mundial", disse Wayne, que foi cortado do grupo após o ocorrido no clássico Come-Fogo.

Eis que veio o lance em setembro de 2002. Desde então, a carreira de Wayne sofreu um grande declínio. "No ano seguinte (2003), tive uma tendinite no joelho que me deixou meses em tratamento. Não consegui me recuperar a tempo e acabei perdendo a vaga para as competições no Reino Unido. Fiquei com o time reserva disputando o Campeonato Paulista. A excursão foi prolongada além da previsão, e quando o time principal voltou, o Paulista estava no final. Atuei os últimos jogos no time principal como titular. Fui bastante elogiado pelo técnico", contou.

O técnico em questão era Marcel. Zito, que havia invadido o campo no clássico contra o Botafogo, havia deixado o clube. "Ele não concordava com algumas coisas que vinham acontecendo. Acho que já era um sinal do que iria acontecer. Ele me apoiou e incentivou todo o tempo."

Após o fim do Paulista Sub-17 de 2003, o Botafogo ainda iria disputar um campeonato curto no final do ano. O próprio clube entraria em contato com os jogadores que iriam treinar. Wayne não foi chamado, mas soube do início dos treinos por parte dos companheiros. Assim, apareceu no dia da primeira atividade.

"Ao chegar, disseram que eu não iria participar do treino. Não entendi e fiquei esperando pra conversar com o Marcel, mas ele me deixou o treino todo plantado esperando. Uma tarde toda se foi naquela espera. Por fim, ele não conversou comigo. Mandaram que eu fosse para a administração, e lá fui informado que estava sendo dispensado. A pessoa que estava lá falou: 'Wayne, não sei como e nem por que, mas seu nome está aqui na lista (de dispensas) e o motivo é deficiência técnica'", contou Wayne, saindo do Botafogo aos 16 anos.

Após deixar o Estádio Santa Cruz, Wayne foi a São Paulo para se encontrar com um empresário "para que ele pudesse cuidar da minha carreira nessa nova fase". No entanto, o conhecido empresário não conseguiu um teste em qualquer outro clube. Porém, por intermédio de seu próprio pai, Wayne conseguiu um teste no União São João de Araras, onde ficou por uma semana.

"Fiz testes físicos, técnicos, táticos e coletivos. Sentia que estava bem - e olha que eu sempre fui muito crítico comigo mesmo. Estava certo da minha permanência. Algumas pessoas estavam acompanhando essa semana de treinos, inclusive o pai de um amigo que já fazia parte do elenco, e todas comentaram que eu tinha me destacado. Além disso, o time tinha apenas um lateral esquerdo e estava a uma semana do início do Paulista (Sub-17)", contou Wayne. "Contudo, ao final do período, fui dispensado, sem nenhuma justificativa ou informação."

Antes do incidente no clássico de 2002, Wayne chegou a ser convidado a jogar por outros clubes. Nunca saiu. Passada a polêmica, ficou sem clube. Com apenas 17 anos, havia chegado o momento de tomar uma dura decisão: encerrar a carreira.

Vítima da regra, Wayne trocou futebol por faculdade
Longe dos gramados, Wayne ainda guarda hoje as medalhas e os troféus que conquistou no futebol Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

"Desiludido com o futebol", Wayne ainda guarda troféus e medalhas conquistadas em casa
Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

"A decisão de abandonar o futebol foi certamente a mais difícil de toda a minha vida, embora não tenha sido uma decisão minha. Com todas as situações já expostas e o pesadelo em que se transformou minha carreira, não sobrou outro desfecho que não fosse abandonar meu maior sonho", conta Wayne, hoje ex-jogador do Botafogo de Ribeirão Preto. Afastado dos gramados após o incidente em clássico contra o Comercial, o bancário faz um balanço da carreira.

"Quando você se depara com cenários como os que me defrontei, sendo dispensado pelo clube que defendi por 10 anos, mesmo com todo o meu histórico... Depois ao não conseguir testes, mesmo estando com um bom empresário, nem nos clubes que haviam me convidado anteriormente... E finalmente após uma ótima semana em um clube que precisava de um jogador na minha posição e não ficar, você para e pensa: não vai ser."

Com 17 anos, "desiludido com o futebol", Wayne resolveu priorizar os estudos. Ao 18, ingressou como bolsista na faculdade de administração de empresas. Na mesma época, ganhou seu primeiro filho, "que passou a ser minha fonte de energia e inspiração". "Essas decisões foram fundamentais para a vida que levo. Estou formado desde 2008, trabalho em uma grande instituição financeira e hoje vivo para minha família e amigos."

Durante sua passagem pelos gramados, Wayne fez amigos que se profissionalizaram - casos de Diego Alves, atualmente goleiro do Almería-ESP, e Lima, ex-meia do Atlético-MG. Com alguns desses amigos, o ex-lateral ainda joga futebol em quadras de grama sintética, onde tem a companhia de seu irmão mais novo (Weber).

Além disso, ainda disputa campeonatos amadores em clubes de Ribeirão Preto. "Digo a todos sempre: até o dia em que eu conseguir me manter em pé, vou jogar futebol. E quando não conseguir mais, vou tentar atuar nas embaixadinhas sentado. Se não conseguir, será um dia de luto para mim."

Hoje, é com grande alegria que Wayne fala de sua família. "Tenho um primo que se chama Gabriel. Ele joga nos juniores do Botafogo. Torço imensamente para que ele consiga realizar o seu sonho, pois seria o único da família. Eu, meu irmão e um outro primo não conseguimos", contou o hoje bancário, que cobre a família de elogios.

"Tenho um pai exemplar, uma mãe de ouro. Somos cinco filhos, todos homens. Somos muito unidos. Quando nos cumprimentamos, sempre nos beijamos carinhosamente no rosto. Mesmo sendo todos adultos, chamamos nossos pais de papai e mamãe", contou.

"Atualmente moro com meus pais, com minha mulher Chiara que está grávida de quarto meses, e dois dos meus irmãos. Estamos esperando a entrega do apartamento que compramos, nossa última e maior realização."

Feliz mesmo após o fim de suas expectativas, Wayne adota o tom de confissão na hora de contar sobre sua relação com o Botafogo.

"Por um período de três anos, evitei conversar sobre o Botafogo. Não assistia jogos e repudiava qualquer conquista. No final de 2006, voltei ao estádio para levar meu filho ao seu primeiro jogo. Foi quando senti novamente aquela energia que existe dentro do estádio. Percebi que não valia a pena nutrir aquele sentimento ruim", diz Wayne.

"Hoje assisto aos jogos, pois minha família toda continua sendo botafoguense. Torço pelos bons resultados, porque sei que vão ajudar especialmente a carreira do meu primo e de outros atletas sonhadores, como um dia eu fui."

Fora o incidente com o árbitro Jenkins Barbosa dos Santos, Wayne ainda guarda um grande incômodo de sua tentativa frustrada de jogar futebol.

"A maior dor", como o próprio Wayne destaca, "é o fato de não realizar o sonho de minha avó, dona Cida. Ela sempre dizia que o motivo que a faria imensamente feliz seria me ver jogando profissionalmente. De preferência no Corinthians, visto que ela sempre foi corintiana roxa. Infelizmente, ela faleceu em 2008, e eu falhei com ela."

Dedicado à família, Wayne deixou os gramados. Atualmente, é torcedor, pai e marido. Mas ainda guarda a dor de ter enfrentado o preconceito e a falta de bom senso de um árbitro.

"A grande cicatriz que ficou é ouvir que a prática de esportes é um meio de inclusão social - em especial o futebol, que tem unido povos e países em guerra. Minha deficiência provocou no árbitro uma indignação grande e sem explicação. Até hoje não entendi porque ele fez isso comigo. Com certeza, ele não ganhou nada. Não o vejo arbitrando. Eu, sim, perdi tudo: minha oportunidade de realizar meu maior sonho, meu grande projeto de vida: jogar futebol", encerrou Wayne, em tom de desabafo.

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